Alma de Jardineira

terça-feira, setembro 28, 2010

o meu alimento é todas as coisas

(...)
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O meu alimento é todas as coisas.
O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou o poeta.

Jorge Luis Borges, in "A Cifra"

domingo, setembro 26, 2010

não choro eu

Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que nos homens
em todo o tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu.

António Gedeão

sexta-feira, setembro 24, 2010

é Deus que fala num idioma cintilante

Se o vento da manhã sopra suave
rente ao ouvido do homem
É Deus que fala num idioma cintilante
por dentro do coração do homem

Assim o pensa a ideia
sobre a forma de tantas coisas simples
como o frio da geada tão perto de casa
tocando a minha cara

Rui Machado

quarta-feira, setembro 22, 2010

de dádivas encheram o Outono


Antes de amar-te, amor, nada era meu

(....)

Tudo estava vazio, morto e mudo,
Caído, abandonado e decaído,
Tudo era inalienavelmente alheio,
Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza
De dádivas encheram o outono.


Pablo Neruda

terça-feira, setembro 21, 2010

estrelas fixas decidem uma vida

(...)

Anos depois, na estrada,
Encontro

Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.

Sylvia Plath
(tradução de Ana Cristina Cesar)

segunda-feira, setembro 20, 2010

um destino de eremita

(....) O poeta
tem um destino de eremita. Cultiva laranjas,
maçãs e pêros. Depois colhe romãs e cerejas.

José António Gonçalves

domingo, setembro 19, 2010

e o fim da tarde

(...)

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
(...)

Cesário Verde

quinta-feira, setembro 16, 2010

a grande ilha do silêncio de deus

Somos a grande ilha do silêncio de deus
Chovam as estações soprem os ventos
jamais hão-de passar das margens
(...)
É esta a grande humildade a pequena
e pobre grandeza do homem

Ruy Belo

terça-feira, setembro 14, 2010

de olhos fechados e lâmpadas nos dedos

(...)
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

MárioCesariny

domingo, setembro 12, 2010

e a saudade é tudo ser igual

(...)
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer — fosse abertura —
E a saudade é tudo ser igual.

Daniel Faria

terça-feira, setembro 07, 2010

um corpo rodopia na solidão que te rodeia


(´´´)

Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.

(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)

David Mourão-Ferreira

sábado, setembro 04, 2010

arquivar toda a ciência

(...)
Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.

Carlos Drumond de Andrade

sexta-feira, setembro 03, 2010

pequenas felicidades certas



Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles

quinta-feira, setembro 02, 2010

por mais que o matem

(...)
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drumond de Andrade