Alma de Jardineira

segunda-feira, junho 29, 2009

A palavra mágica



Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la
a vida inteira no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.


Carlos Drummond de Andrade

domingo, junho 28, 2009

os primeiros sinais do verão

A mão que entrega à tua
os primeiros sinais do verão
já não sabe o caminho - é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante. Ou ignorar
fosse todo o saber.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, junho 26, 2009

fonte ou brisa ou mar ou flor

Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor,
Nos meus versos chamar-te-ei amor.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, junho 25, 2009

Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos


Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.


Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.


Herberto Helder

segunda-feira, junho 22, 2009

nestes jardins de abril em que respiras.


Há jardins invadidos de luar

Que vibram no silêncio como liras,
Segura o teu amor entre os teus dedos
Nestes jardins de abril em que respiras.

A vida não virá - as tuas mãos

Não podem colher noutras a doura

Das flores baloiçando ao vento leve.

Fosse o teu corpo feito de luar,
Fosses tu o jardim cheio de lagos,
As árvores em flor, a profusão
Da sua sombra negra nos caminhos.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, junho 21, 2009

florscem do mesmo modo e têm o mesmo sorriso antigo

Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram à solta para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam....

Alberto Caeiro

quinta-feira, junho 18, 2009

o fio com que teces os dias sem memória

(....)
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

(...)

Eugénio de Andrade

terça-feira, junho 16, 2009

Pequenas coisas

Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrerem voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússolana floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.

Albano Martins

domingo, junho 14, 2009

outro jardim possível e perdido


Jardim em flor, jardim da impossessão,
transbordante de imagens mais informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.

A verdura das árvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava,
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.

A luz trazia em si a agitação
De paraísos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidades e suspensão.

Mas cada gesto em ti se quebrou denso
Dum gesto mais profundo em ti contido,
Pois trazias em ti suspenso
Outro jardim possível e perdido.


Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, junho 13, 2009

o tempo onde a luz buscamos



O tempo a que sempre regressamos
e nos visita um instante

O tempo que depois destruímos
construímos e ali-
mentamos se nos
alimenta

O tempo onde a luz buscamos e
a morte sempre
encontramos

Casimiro de Brito

sexta-feira, junho 12, 2009

Sou uma pequena folha na felicidade do ar

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

António Ramos Rosa

quarta-feira, junho 10, 2009

uma ardente confusão de estrela e musgo


Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas
lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
- E nós estamos dentro, subtis, e tensos
na música.
(....)
Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
- Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,
e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.

Toda a água descendo é fria, fria.
Os veios que escorrem são a imensa lembrança. Os velozes
sóis que se quebram entre os dedos,
as pedras caídas sobre as partes mais trêmulas
da carne,
tudo o que é úmido, e quente, e fecundo,
e terrivelmente belo
- não é nada que se diga com um nome.
Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo.
(...)
Há gente assim, tão pura.
(...)

Herberto Helder

domingo, junho 07, 2009

as minúsculas portas da alegria

Uma a uma a noite abria
à luz matinal das rolas
as minúsculas portas da alegria.

Eugénio de Andrade

terça-feira, junho 02, 2009

onde a luz é feliz e se demora

Faz uma chave, mesmo pequena,
entra em casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.

Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.

Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.

Eugénio de Andrade

segunda-feira, junho 01, 2009

quando eu bati à tua porta

(...)
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
(...)

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me

Ana Hatherly