Alma de Jardineira

sábado, julho 25, 2009

que secam folhas nas árvores dos dedos



Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.

Natália Correia

quinta-feira, julho 23, 2009

o milagre das coisas que eram minhas


Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flocos marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.


A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.


Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
Do milagre das coisas que eram minhas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, julho 22, 2009

o homem inacabado

Todas as árvores com todos os ramos com todas as folhas
A erva na base dos rochedos e as casas amontoadas
Ao longe o mar que os teus olhos banham
Estas imagens de um dia e outro dia
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A transparência dos transeuntes nas ruas do acaso
E as mulheres exaladas pelas tuas pesquisas obstinadas
As tuas ideias fixas no coração de chumbo nos lábios virgens
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A semelhança dos olhares consentidos com os olhares conquistados
A confusão dos corpos das fadigas dos ardores
A imitação das palavras das atitudes das ideias
Os vícios as virtudes tão imperfeitos

O amor é o homem inacabado.

Paul Eluard

terça-feira, julho 21, 2009

durante um pássaro lento

vi os teus olhos durante um pássaro lento
que atravessou o céu e desapareceu
atrás da montanha.

olhando as nuvens, compreendi que eras
meu amigo durante árvores a crescerem
nos campos.

dentro do meu olhar, na terra fresca, havia
rochas que existiam desde o início da nossa
amizade.

José Luís Peixoto

domingo, julho 19, 2009

A flor só era bela na raíz

(...)
A flor só era bela na raiz,
o Mar só era belo nos naufrágios,
as mãos só eram belas se enrugadas,
aos olhos sabedores e vividos
dos que vinham da Dor directamente.

(...)

Sebastião da Gama

segunda-feira, julho 13, 2009

um beijo aberto na sombra

Tudo lhe doía
de tanto que lhes queria:

a terra
e o seu muro de tristeza,

um rumor adolescente,
não de vespas
mas de tílias,

a respiração do trigo,

o fogo reunido na cintura,

um beijo aberto na sombra,

tudo lhe doía:
(...)
Eugénio de Andrade

quinta-feira, julho 09, 2009

e aves verdes vieram desvairadas


Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.

Eugénio de Andrade

terça-feira, julho 07, 2009

fazer da palavra morada de silêncio

Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos,
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

domingo, julho 05, 2009

Como uma flor vermelha



À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.


Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, julho 02, 2009

A hora da partida


A hora da partida soa quando
Escurecem o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.
A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.


Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, julho 01, 2009

De tudo quanto nós fomos

(....)

De tudo quanto nós fomos,
Apenas sei que sou triste.

António Botto