Alma de Jardineira

quarta-feira, abril 29, 2009

Canção grata


Por tudo o que me deste: — Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco...
Obrigado, obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
— Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado...
Sem ironia, amor: — Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!

Carlos Queiroz (1907-1949)

terça-feira, abril 28, 2009

como a água que vem da montanha



Meus pensamentos são nómadas
e vagarosos
como a água que vem da montanha
e não sabe nada
do coração dos homens. O meu, por exemplo,
tem a leveza do vento
e corre para casa como se fosse
um cão que precede
os passos do dono.

Casimiro de Brito

segunda-feira, abril 27, 2009

vivo na delícia nua da inocência



Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.

António Ramos Rosa, in "Volante Verde"

domingo, abril 26, 2009

secam folhas nas árvores dos dedos


Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.

Natália Correia

sábado, abril 25, 2009

incapazes de ser flor



Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, abril 24, 2009

quando te perguntarem pelas minúsculas sementes



Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?

Eugénio de Andrade

quinta-feira, abril 23, 2009

Sem regresso nem resposta



Será possível que nada se cumprisse?
Que o roseiral a brisa as folhas de hera
Fossem como palavras sem sentido
- Que nada sejam senão teu rosto ido
Sem regresso nem resposta - só perdido

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, abril 21, 2009

pondo rosas nos teus dedos descuidados



Os anjos que prometes são apenas
o rosto triste dos dias desolados.
Eu não prometo nada, sou alegria.
Aceito os anjos nos beijos que me dás
pondo rosas nos teus dedos descuidados.

Eugénio de Andrade

domingo, abril 19, 2009

nos rodeamos de amigos y fantasmas


Sigue el mundo su paso, rueda el tiempo
y van y vienen máscaras.
Amanece el dolor un día tras otro,
nos rodeamos de amigos y fantasmas,
parece a veces que un alambre estira
la sangre, que una flor estalla,
que el corazón da frutas, y el cansancio
canta.

Jaime Sabines

sexta-feira, abril 17, 2009

As flores do campo da minha infância


As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente,
Em outra maneira de ser?
Perderei para sempre os afectos que tive, e até os afectos que pensei ter?
Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta,
E me possa abrir com razões a inteligência do mundo?

Álvaro de Campos

quarta-feira, abril 15, 2009

não descubro o segredo


Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas
 
deste rio correndo
entre a pele e a pele
 
Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas
 
Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega
 
 
 
David Mourão Ferreira


terça-feira, abril 14, 2009

uma brusca maneira de florir



Aqui durante a noite ouve-se o mar
e as palavras deixam-se despir;
como o pessegueiro mal abril começa
tenho uma brusca maneira de florir.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, abril 08, 2009

Como se não houvera bosque mais secreto

Como se não houvera
bosque mais secreto

como se as nascentes
fossem só ardor,

como se o teu corpo
fora a vida toda,

o deseja hesita
em ser espada ou flor.


Eugénio de Andrade

domingo, abril 05, 2009

tu sabes

Quietos fazemos as grandes viagens
tu sabes
só a alma convive com as paragens
estranhas
(...)

José Tolentino Mendonça