Alma de Jardineira

domingo, março 29, 2009

Dizer



O mistério cintila no mistério.
Dizer e não dizer.
Procurarei o oculto
o meu reino não é para se ver.

Manuel Alegre

segunda-feira, março 23, 2009

dentro da casa abandonada que é o teu coração



(...)
e o teu coração dizia

fecha as janelas

porque de fora vigiavam passos e rostos se aproximavam para
entrar
porque, estando lá dentro, ainda queria entrar mais e mais, passar
o mundo podre de casa antiga,
o poste junto à vedação construída com arbustos,
entrar ainda mais, mais ainda, para um lugar mais longe,
dentro da casa abandonada que é o teu coração

e, quando cheguei lá dentro, dei por mim
que me olhavas de fora da vedação
(nem tu, no coração, havias chegado tão longe)
(.....)

Laura Moniz, in "Ilha 5"

quinta-feira, março 19, 2009

Eternidad


No importa cuántas veces

hayas perdido la inocencia

siempre vendrá a ti un hombre

que invoque la magia

y la recupere para ti

Luego

por la maravilla de la inercia

te deshojará pétalo a pétalo

dejándote desnuda

liviana

Lista para la próxima vez

para el próximo milagro

Eva Durán

terça-feira, março 17, 2009

o que não fomos


é tudo o que não foste
o que não fomos
que me atravanca os dias

o espelho em que me vejo empalidece
como um retrato antigo

sinto-me longe

é quinta feira
Março
o tempo não levanta

de resto aprendo que a monotonia
é apenas isto
o regressar contínuo
ao vazio das coisas


Luís Amorim de Sousa

segunda-feira, março 16, 2009

ao passar o vento


Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.


Eugénio de Andrade

terça-feira, março 10, 2009

o som da música e mais nada


Que seja o fim. Que Deus escreva agora um zero
Defronte do meu nome. E fique, então, cerrada
A porta... Mas se ainda perguntar se quero
Alguma coisa mais? Só música e mais nada.

Que interessa o que vai por esse mundo? As mansas
Nuvens corram no céu da minha vida, e fechem
Por completo o horizonte, e seja o fim, mas deixem
Ouvir, ouvir o riso de oiro das crianças;

E ver, e ver poisar, aos bandos, nos beirais
As pombas, ou riscar violentamente o espaço
Uma andorinha. Assim, que mais eu quero? O abraço
Que alguém me der será... será talvez demais;

E ver, e ver ainda abrir-se lá nos frisos
De vasos uma outra delicada flor.
O arco-íris também... Aves e flores, risos
De crianças... E sons de música ao redor.

Fechado guardarei comigo a sete chaves
O efémero da vida... o que traz a alvorada
E a noite depois leva... Risos, flores, aves,
O arco-íris, o som da música e mais nada.

Cabral do Nascimento
(in "Fábulas", s.d.,Portugália Editora,Lisboa)

domingo, março 08, 2009

Caminhos

Lado a lado, caminhos diferentes.
O importante não é cruzarem-se.
O importante é seguirem na mesma direcção.
Com pontes aqui e ali. Nos locais essenciais.

sexta-feira, março 06, 2009

não sei - não sei dizer


Não perguntes, não sei — não sei dizer:
Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder.

terça-feira, março 03, 2009

a vida presente

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
(...)
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

domingo, março 01, 2009

o segredo da terra cresce em cada olhar


A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.

Dylan Thomas